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Jacques Delors. O homem que se tornou sinónimo de Europa

Homem de esquerda e independente, Delors teve uma vida política atípica. À frente da Comissão Europeia, promoveu o mercado comum, o euro e até a PAC. Em França, nunca foi Presidente ou sequer PM.

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Estamos a 1 de setembro de 1992. Faltam menos de 20 dias para os franceses votarem no referendo sobre o Tratado de Maastricht — um dos tratados fundadores da União Europeia (UE), que lançaria as fundações da moeda única — e o presidente da Comissão, Jacques Delors, dá uma entrevista à rádio Europe 1.

Está em campanha, a tentar convencer os franceses a dizerem ‘Sim’ ao Tratado. E, no meio da conversa, faz uma afirmação profética: “Costuma perguntar-se: ‘Se fosse para uma ilha deserta, que disco ou filme levaria consigo?’. A mim perguntar-me-ia ‘Se pudesse escolher era candidato à presidência da República ou dizia sim à Europa?’ e eu responderia, sem hesitação, o sim à Europa.”

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Jacques Delors foi presidente da Comissão Europeia durante dez anos

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Foi exatamente esse o caminho de vida de Delors, que morreu esta quarta-feira aos 98 anos. A notícia foi confirmada pela sua filha, Martine Aubry, que também seguiu o caminho da política e é atualmente presidente da Câmara de Lille. “Inesgotável artesão da nossa Europa”, classificou o Presidente francês, Emmanuel Macron.

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“Artesão”, “arquiteto”, “engenheiro” do projeto europeu — todos esses adjetivos foram usados nos obituários dos jornais para se referirem a Delors, o homem que ocupou o cargo de presidente da Comissão durante dez anos (1985-1995) e o moldou à sua imagem. Foi com ele que Bruxelas se desenhou à imagem que tem hoje: do Ato Único Europeu ao Tratado de Maastricht, foi durante o consulado de Delors que se desenvolveram as ideias do mercado único, da livre circulação de Schengen, da Política Agrícola Comum, do programa Erasmus.

A presidência de França, essa, nunca chegou. Mas não porque Delors tenha tentado e falhado: foi antes porque, como ele próprio previu, decidiu nem sequer arriscar. “Falta-me uma qualidade crucial num político: acreditar em mim mesmo”, confessou em tempos. O legado que deixou na Europa, contudo, é tão grande como a sua modéstia.

Católico, sindicalista e um esquerdista num governo de direita

Jacques Delors nasceu a 20 de julho de 1925, no centro de Paris, numa família católica e de classe trabalhadora. Essas duas influências marcariam toda a vida do homem e do político, como o próprio reconheceu numa das últimas entrevistas que deu, ao jornal Le Point: “Quando andava na escola, compreendi que amigos meus, que eram tão talentosos como eu, iam ser mandados para as fábricas com 14 ou 15 anos. A noção desta desigualdade nas oportunidades de educação foi uma das bases para o meu compromisso subsequente.”

Na adolescência, junta-se à Juventude dos Trabalhadores Católicos. Em criança sonhara ser realizador, mas os pais temiam um futuro incerto e, por isso, o jovem Delors vai para Direito na Universidade pública. Aos 25 anos, faz o exame para entrar no Banco de França, onde o pai trabalhava como cobrador. Vai subindo rapidamente na organização, ao mesmo tempo que se envolve no sindicalismo ligado à democracia-cristã.

O Maio de 68 deixá-lo-ia politicamente órfão. “Parecia-me que o meu discurso não era ouvido nem pela esquerda nem pela direita”, escreveu no seu livro Changer, a propósito desses tempos. “É claro que ainda me considero um homem da esquerda, mas tenho de admitir que, honestamente, o futuro não é claro para mim.”

Nos tempos livres, dedica-se aos filmes, a ouvir jazz e também ao desporto (joga basquetebol, acompanha o ciclismo e lê o L’Équipe todas as manhãs, hábito que manterá toda a vida). É também diretor da revista Citoyens 60 e escreve sob o pseudónimo Roger Jacques na revista Reconstruction, onde assina artigos de pendor claramente socialista e críticos do marxismo.

O Maio de 68 deixá-lo-ia politicamente órfão. “Parecia-me que o meu discurso não era ouvido nem pela esquerda nem pela direita”, escreveu no seu livro Changer, a propósito desses tempos. “É claro que ainda me considero um homem da esquerda, mas tenho de admitir que, honestamente, o futuro não é claro para mim.”

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Jacques Delors (segundo a contar da esquerda) foi conselheiro do primeiro-ministro gaullista Jacques Chaban-Delmas (à esquerda)

Gamma-Keystone via Getty Images

Daí que, no ano seguinte, tenha decidido aceitar o convite para fazer parte da equipa do primeiro-ministro Jacques Chaban-Delmas, conhecido gaullista. “Tinha de escolher entre uma certa lealdade a quem sou e a eficiência”, confessaria também no Changer. Pragmático, optou pela eficiência e a possibilidade de influenciar um governo, mesmo que um longe da sua área política.

Delors e Mitterrand, “água e fogo”

Com o fim do mandato de Chaban, Delors volta a dedicar-se à carreira no Banco de França e a dar aulas. Mas não esquece a política e decide aderir ao Partido Socialista. Desde cedo, aproxima-se politicamente de François Mitterrand, muito embora os dois não cultivem a melhor relação pessoal. São como “a água e o fogo”, nota o Le Monde, que recorda o momento em que se conheceram na década de 60, no gabinete de um jornalista do L’Express: Mitterrand disse de imediato “Preciso de um rapaz como tu”, mas Delors não quis juntar-se à sua equipa. Ao longo da vida, o parisiense pronunciaria de forma errada o nome de Mitterrand de forma propositada, nota o Le Point, como “político inimigo vingativo” que era.

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Foi ministro em vários governos de François Mitterrand (à direita na foto), mas este não quis nomeá-lo como primeiro-ministro

Gamma-Rapho via Getty Images

Mitterrand, porém, seria o homem que o faria regressar à política com “P” grande, após ser eleito Presidente em 1981. Com a pasta das Finanças, Delors enfrenta os seus demónios à esquerda num Conselho de Ministros que incluía três membros do Partido Comunista — e que decide de imediato avançar com nacionalizações.

Delors perde essa batalha, mas ganha a seguinte: perante o crescimento de desemprego e as necessárias desvalorizações do franco, Delors impõe a sua receita austeritária. “O meu medo é que os franceses estejam a adormecer à sombra do Estado”, avisa, como recorda o Le Figaro.

“Terias sido uma boa escolha para o Matignon, mas não és suficientemente de esquerda e não te sabes mexer bem dentro do partido”, disse-lhe François Mitterrand, em julho de 1984.

O tom coloquial e direto, embora pouco sorridente, agrada aos franceses e Delors consegue manter alguma popularidade, apesar das medidas. O facto de apostar numa postura de resiliência e humildade, dando pouco nas vistas, também. Em 1982, no seu segundo ano no governo, o filho Jean-Paul, de 29 anos, morre com leucemia. Depois do funeral, Delors segue para o Conselho de Ministros desse mesmo dia.

Ao longo do período no governo, Jacques Delors alimenta o sonho de poder vir a ser nomeado primeiro-ministro. Mitterrand, porém, tem outras ideias: “Terias sido uma boa escolha para o Matignon, mas não és suficientemente de esquerda e não te sabes mexer bem dentro do partido”, disse-lhe o Presidente, em julho de 1984.

Dos embates com os britânicos à união monetária aquém do que desejava

Apesar disso, no ano seguinte, não é Mitterrand quem dá o maior empurrão para que Delors siga para a Europa — prefere antes Claude Cheysson, nota o Le Monde. O principal promotor da escolha de Delors para presidente da Comissão Europeia é, curiosamente, um alemão: o chanceler Helmut Kohl, que se tornaria um dos maiores aliados de Delors em Bruxelas. Mitterrand acabaria por adquirir também esse estatuto ao nível da política europeia, apesar das divergências pessoais dos dois.

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Jacques Delors com o chanceler alemão Helmut Kohl, um dos seus maiores aliados na Europa

picture alliance via Getty Image

O francês decidiu aceitar o cargo. “O meu pai, com 75% de deficiência provocada pela Guerra, disse-me ‘Temos de nos reconciliar’. Isso levou-me à Europa”, contou o próprio. Assim que toma posse, faz um anúncio em grande no Parlamento Europeu: “Quero anunciar e depois aplicar a decisão de remover todas as fronteiras do mercado interno europeu até 1992”. Seis meses depois, entrega o Livro Branco com medidas para concretizar o mercado único.

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Com Margaret Thatcher, uma das líderes com quem teve mais embates na Comissão Europeia

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Só isso seria suficiente para definir Delors como “o senhor Europa”. Mas, ao longo dos dez anos no cargo, vai ainda mais longe no ímpeto reformista. Com uma visão claramente federalista, protagoniza vários choques, em particular com os britânicos. Up yours, Delors, chegou a titular o The Sun. “O Plano de Delors para Governar a Europa” é outro dos artigos polémicos da imprensa britânica, assinado precisamente pelo futuro obreiro do Brexit — Boris Johnson —, no Telegraph.

Apesar disso, a relação entre Delors e a primeira-ministra Margaret Thatcher era menos aguerrida do que poderia parecer à primeira vista. Isto segundo Delors, que o confessou numa entrevista em 2021, dizendo que a Dama de Ferro não era nenhum “gato preto” para si: “A senhora Thatcher, que era a minha principal interlocutora, tinha a sua visão sobre o assunto, mas apesar disso era europeia. E quando chegou a altura de eu ser renomeado, ela levantou a mão.”

O Tratado de Maastricht é difícil de aprovar — foi inicialmente chumbado num primeiro referendo na Dinamarca —, mas Delors consegue levar avante a sua ideia de bases para a moeda única. Ela não chega, contudo, tão longe como desejaria: “O ‘E’ tem de ser tão forte como o ‘M’ na união”, diz à altura sobre a União Económica e Monetária. Para Delors, o ideal seria criar não só uma política monetária comum, mas também uma política económica comum.

Durante a crise da dívida, decretou que “a Europa não precisa apenas de bombeiros, mas também de arquitetos”. Na sequência dos atentados islâmicos em França, apelou a que o funcionamento de Schengen não fosse alterado por uma deriva securitária. Mais recentemente, durante a pandemia de Covid-19, avisou que a UE corria “um perigo mortal” por falta de solidariedade entre os governos europeus.

O período no edifício Berlaymont acabaria por consumir grande parte da vida de Jacques Delors. Nos últimos anos de vida, já menos ativo em público, continuou contudo a pronunciar-se sobre as questões europeias. Durante a crise da dívida, decretou que “a Europa não precisa apenas de bombeiros, mas também de arquitetos”. Na sequência dos atentados islâmicos em França, apelou a que o funcionamento de Schengen não fosse alterado por uma deriva securitária. Mais recentemente, durante a pandemia de Covid-19, avisou que a UE corria “um perigo mortal” por falta de solidariedade entre os governos europeus.

A decisão de não concorrer à presidência — e a “porção de arrependimento”

Que Delors foi uma figura maior europeia — definindo o rumo da UE como a conhecemos, para o bem e para o mal — não parece haver dúvidas. No seu país-natal, porém, Jacques Delors é talvez mais recordado por ser o homem que poderia ter dado novamente o poder à esquerda, mas que optou por passar ao lado da oportunidade.

Em 1994, com o mandato em Bruxelas a chegar ao fim, Delors era um homem desejado em França. Mitterrand iria sair de cena e a direita mantinha-se dividida entre Jacques Chirac e Édouard Balladur. Nestas circunstâncias, o Partido Socialista procurava um candidato — e Delors perfilava-se como um candidato ideal.

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Em entrevista na televisão, Delors anunciou que não iria ser candidato à presidência de França

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A 11 de dezembro, o socialista vai ao conhecido programa 7 sur 7, com a jornalista Anne Sinclair. Na véspera, tinha feito uma lista de prós e contras sobre uma possível candidatura ao Eliseu. Os prós seguiam à frente.

Na manhã da entrevista, porém, Delors acrescentou mais argumentos aos “contras”. E, quando chegou aos estúdios de televisão da TF1, leu uma declaração: “Decidi não ser candidato à Presidência da República”, afirma. “Muitas razões pessoais levaram-me a dizer ‘não’. Vou fazer 70 anos. Trabalhei incansavelmente durante 50. É mais razoável, nestas condições, considerar uma forma de vida mais equilibrada entre reflexão e ação.”

O que se seguiu já todos sabemos. Jacques Chirac venceu as eleições e a esquerda francesa entrou em crise. O Partido Socialista só voltou a ter um Presidente, que não foi além de um mandato: François Hollande, afilhado político de Delors.

“Acho que poderia ter sido um bom Presidente [de França]”.
Jacques Delors

Nas últimas entrevistas que deu em vida, Delors refletiu sobre essa escolha. “Não tenho arrependimentos, mas questiono-me”, disse ao Le Point em 2021, reconhecendo que a sua carreira política em França “não foi ótima”.

No ano seguinte, no documentário Jacques Delors, journey of a European (France 5), seria ainda mais franco. Admitindo uma “porção de arrependimento”, o eterno comissário europeu teve um lampejo de auto-confiança e permitiu-se a uma confissão nunca antes ouvida: “Acho que poderia ter sido um bom Presidente”.

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