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A generalização das Unidades Locais de Saúde a todo o país é apresentada como a “grande reforma do SNS” pelo diretor-executivo, Fernando Araújo. “Que não haja a mínima dúvida” [sobre isso], sublinhou. Mas será mesmo assim? A Direção Executiva do SNS garante que a substituição de Centros Hospitalares e Agrupamentos de Centros de Saúde por Unidades Locais de Saúde (ULS) traz várias vantagens, que vão de uma maior integração dos cuidados até a ganhos de eficiência e ao nível da gestão.

No entanto, várias entidades (entre as quais a Ordem dos Médicos e a Associação Nacional das Unidades de Saúde Familiar) contestam a eficiência do modelo e pedem mudanças na organização interna das ULS. Pior: um estudo, elaborado pela Entidade Reguladora da Saúde, sobre o desempenho das ULS, concluiu que este modelo não constitui uma vantagem, uma vez que os hospitais integrados nas ULS têm piores resultados, em vários indicadores, do que os restantes.

A verdade é que a “grande reforma do SNS” vai mesmo avançar e, em 2024, o país estará coberto por 39 ULS — mais 31 do que as que existem atualmente.

O que é uma Unidade Local de Saúde?

Uma Unidade Local de Saúde é uma modelo de organização dos cuidados de saúde que junta hospitais/centros hospitalares e Agrupamentos de Centros de Saúde (ACeS), e que pretende garantir a prestação de cuidados de saúde primários, hospitalares e continuados, de forma integrada, à população.

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Em resposta ao Observador, a Direção Executiva do SNS defende que se trata de um modelo “facilitador de integração de cuidados, pela agilidade na integração de cuidados, simplificação de processos, otimização de recursos de forma global e co-responsabilização da gestão em saúde de uma população”.

Atualmente existem oito ULS em todo o país, que servem cerca de um milhão de utentes, e que se estendem desde a região de Trás-os-Montes até ao Alentejo. A mais antiga, a ULS de Matosinhos, foi criada em 1999. As outras sete situam-se em região de baixa densidade populacional: Norte Alentejano, Guarda, Baixo Alentejo, Litoral Altentejano, Castelo Branco, Alto Minho e Nordeste.

A intenção do governo é criar mais 31 ULS, substituindo os atuais Centros Hospitalares e os ACeS, que, desta forma, deixarão de existir. Estas três dezenas de novas ULS deverão entrar em funcionamento a 1 de janeiro de 2024, elevando o número total de ULS para 39. De fora do modelo ficam apenas o único hospital em regime de Parceria Público Privada que existe em Portugal (o Hospital de Cascais) e os três institutos de Oncologia (IPO de Lisboa, Porto e Coimbra).

Que vantagens vão trazer as ULS (segundo a Direção Executiva)?

Com esta reforma, a Direção Executiva do SNS pretende melhorar o acesso dos utentes aos serviços de saúde e aproximar os cuidados das pessoas, tornando-os mais eficientes. “É possível organizar os serviços de que atualmente dispomos de uma forma diferente, integrada e centralizada no utente e no seu percurso, conseguindo que as populações beneficiem de cuidados cada vez mais próximos, diferenciados e diferenciadores, maximizando o acesso e a eficiência do SNS”, esclarece a Direção Executiva do SNS.

Para a entidade liderada por Fernando Araújo são sobretudo quatro as vantagens das ULS: resposta integrada e qualificada às necessidades da população; agilidade de gestão; ganhos de eficiência; e economias de escala.

Ao juntar sob a mesma entidade as unidades de cuidados de saúde primários e hospitalares, consegue-se uma “maior aproximação entre profissionais e equipas de saúde, as quais desempenham uma missão complementar, que é a de cada um, ao seu nível, responder às necessidades da população”. Desta forma, “há até a garantia conjunta de uma resposta qualificada em saúde aos utentes ainda sem equipa de saúde familiar”.

No que diz respeito à gestão, o modelo permite uma “maior agilidade”, através de uma “melhor resolução de muitas das necessidades diárias dos profissionais, nomeadamente ao nível da implementação, coordenação e operacionalização de projetos clínicos integrados, sendo estas avaliadas de forma global”.

As Unidades Locais de Saúde trazem também ganhos de eficiência, segundo a Direção Executiva, uma vez que estas permitem “evitar redundâncias” e duplicações de atos clínicos. Neste modelo, “todos os processos relativos às áreas de gestão e logística, como é o caso do aprovisionamento, da gestão de recursos humanos, da gestão financeira, etc, são potenciados e permitem ganhos de eficiência com o aumento da escala de intervenção”.

A Direção Executiva diz ainda que a “profunda reforma” das ULS vai conduzir a um reforço dos cuidados de saúde primários, o que “obrigará necessariamente a mais e melhor coordenação entre os vários níveis de cuidados de saúde e na atribuição de uma equipa de saúde familiar e comunitária a todos os utentes”. Por outro lado, as ULS permitem aumentar a satisfação dos profissionais e otimizar recursos.

Quais as novas ULS que vão ser criadas?

Segundo o plano inicialmente traçado pela Direção Executiva do SNS, e que já se sabe que não será cumprido, deveriam ser criadas, até ao final deste ano, 25 ULS, abrangendo mais de 850 mil utentes. No final de julho, 19 ULS já tinham terminado a elaboração dos planos de negócios (que estavam a ser avaliados com o Ministério das Finanças) e estavam, por isso, em fase mais adiantada do processo.

  • Unidade Local de Saúde de Guimarães;
  • Unidade Local de Saúde da Região de Aveiro;
  • Unidade Local de Saúde de Entre o Douro e Vouga;
  • Unidade Local de Saúde da Região de Leiria;
  • Unidade Local de Saúde do Alentejo Central;
  • Unidade Local de Saúde da Arrábida;
  • Unidade Local de Saúde de Almada – Seixal;
  • Unidade Local de Saúde de Lezíria;
  • Unidade Local de Saúde do Arco Ribeirinho;
  • Unidade Local de Saúde de Póvoa de Varzim/Vila do Conde;
  • Unidade Local de Saúde do Médio Ave;
  • Unidade Local de Saúde de Braga;
  • Unidade Local de Saúde de São João;
  • Unidade Local de Saúde de Vila Nova de Gaia/Espinho;
  • Unidade Local de Saúde de Barcelos;
  • Unidade Local de Saúde de Dão Lafões (Tondela e Viseu);
  • Unidade Local de Saúde do Baixo Mondego (Figueira da Foz);
  • Unidade Local de Saúde do Estuário do Tejo (Vila Franca de Xira);
  • Unidade Local de Saúde do Médio Tejo.

Numa fase mais atrasada do processo estavam, também no final de julho (quando a Direção Executiva enviou, pela última vez, informação sobre as ULS) outras seis.

  • Unidade Local de Saúde de Santo António;
  • Unidade Local de Saúde de Tâmega e Sousa;
  • Unidade Local de Saúde da Cova da Beira;
  • Unidade Local de Saúde do Oeste;
  • Unidade Local de Saúde de Loures/Odivelas;
  • Unidade Local de Saúde de Lisboa Norte.

Unidades vão ser financiadas em função do risco clínico do utente?

Sim. Com o novo modelo, os hospitais vão passar a ser financiados não de acordo com a quantidade de atos realizados mas sim em função do risco clínico dos utentes. Ou seja, das doenças dos habitantes que vivem na área de influência de cada uma das ULS. A chamada “estratificação pelo risco” começará a a ser implementada a partir de setembro nas ULS que já existem — como adiantou em entrevista ao Público, o secretário de Estado da Saúde, Ricardo Mestre — e prevê que a população seja dividida em três grupos: doentes saudáveis, doentes crónicos e casos complexos. Esta divisão vai permitir, segundo a tutela, que sejam delineadas respostas específicas para cada um dos grupos, de modo a evitar descompensações, agudizações e outras situações que “levam as pessoas a recorrer às urgências”. Por outro lado, é uma forma de resolver problemas de subfinanciamento em algumas zonas do país.

Atualmente, a as ULS são financiadas “per capita” (isto é, consoante o número de doentes que servem) mas com base em indicadores como a idade e o sexo, que não refletem a carga de saúde da população, e não permitem adequar o financiamento da melhor maneira. A alteração no paradigma faz com que o “dinheiro acompanhe o utente”, passando o respetivo valor a ser transferido de uma ULS para a outra, trazendo “mais justiça ao processo”, segundo Fernando Araújo.

Segundo escreve o Jornal de Notícias, as ULS vão ter circuitos próprios para doentes crónicos, como por exemplo os diabéticos, o que permitirá melhorar a resposta e articular os cuidados de saúde primários com os hospitalares.

O que vai acontecer aos utentes, aos trabalhadores e aos dirigentes dos hospitais e centros de saúde a partir de 1 de janeiro de 2024?

Os utentes vão continuar a ter total liberdade para escolher onde querem ser tratados, como já acontece atualmente, isto é, poderão escolher onde querem realizar determinada cirurgia ou consulta, não ficando obrigados a ser acompanhados pela ULS da região onde vivem.

No que diz respeito aos trabalhadores, o diretor-executivo do SNS garante que estes “não serão penalizados” e que a transferência para a ULS será feita de forma “muito simples e sem perda de direitos”. Aliás, Fernando Araújo sublinha que as ULS vão facilitar a gestão de pessoas, nomeadamente a mobilidade dos trabalhadores. Já assistentes operacionais dos ACeS que tinham sido transferidos para as autarquias mantêm-se integrados nos municípios e passam a trabalhar nas ULS.

Já os conselhos de administração da ULS deverão ser nomeados até final do ano. Ou pelo menos é isso que Fernando Araújo espera que aconteça. A incerteza neste ponto está sobretudo relacionada com o facto de não ser possível garantir que todas as ULS estarão em funcionamento a 1 de janeiro. O processo que antecede a ‘abertura’ de uma ULS é complexo: assim que é criada, a ULS tem de constituir uma comissão executiva que reúna os presidentes dos conselhos de administração dos centros hospitalares e hospitais que a ULS vai ‘absorver’ bem como os diretores-executivos do ACeS. É a esta comissão que caberá a tarefa de elaborar a proposta de orçamento para 2024. No entanto, as ULS não têm autonomia para o fazerem sozinhas: o orçamento tem de ser negociado com a Direção Executiva do SNS e com o Administração Central do Sistema de Saúde, um dos ‘braços’ do Ministério da Saúde.

Uma das mudanças no âmbito da gestão é que as ULS vão, além do presidente, poder ter seis vogais no conselho de administração, ao invés dos atuais cinco.

ULS estão longe de serem consensuais. Quais as principais críticas?

Perante a longa lista de ganhos e melhorias apresentadas pela Direção Executiva para justificar a generalização das ULS a todo o país, poder-se-ia pensar que o modelo é tão eficiente e apresenta vantagens tão claras que não há ninguém que o conteste. Mas a realidade é bem diferente. Há pelo menos três entidades (Ordem dos Médicos, Associação das Unidades de Saúde Familiar e a Federação Nacional dos Médicos) que questionam a eficiência das ULS e pedem mudanças na orgânica destes entidades. Ao Observador, o presidente da Associação Nacional das Unidades de Saúde Familiar (USF-AN), André Biscaia, sublinha que “as ULS existem há 20 anos e não resolveram problema nenhum”.

Semelhante é a posição da Ordem dos Médicos (OM). “A criação das novas ULS não é, necessariamente, uma boa notícia”, afirmou o bastonário, Carlos Cortes, em abril, à agência Lusa. “Não é um modelo que tenha dado provas de ser eficiente”, disse o responsável. Também a Federação Nacional dos Médicos, um dos dois grandes sindicatos que representam a classe, contesta o modelo de forma veemente, dizendo mesmo “repudiar” a criação de novas ULS que, realça, “são ineficientes e não constituem resposta aos problemas basilares do SNS”.

Um dos pontos que mais críticas gera entre os médicos é o da falta de integração dos centros de saúde nas ULS. A Ordem dos Médicos garante que, nas ULS já existentes, se tem verificado uma “fraca integração dos cuidados de saúde primários”.

As ULS têm um único conselho de administração e uma única direção clínica, que gerem tanto os hospitais como os centros de saúde. O problema, diz André Biscaia, presidente da USF-AN, é que “os hospitais não conhecem a cultura dos cuidados de saúde primários”, o que faz com que, desta forma, seja instituída uma “cultura hierárquica, de comando e controlo, dos hospitais sobre os Cuidados de Saúde Primários”, algo, que, diz, não deveria acontecer. O médico propõe, por isso, uma revisão do modelo de funcionamento das ULS, com “várias direções clínicas”, o que não está previsto.

Direção executiva do SNS quer generalizar as Unidades Locais de Saúde, mas médicos garantem que modelo não é eficiente

O presidente da USF-AN diz também que a generalização das ULS pode fazer com que a “capacidade financeira dos centros de saúde seja desviada para os hospitais, para os internamentos e serviços de urgência”, aumentando ainda a mais a centralidade dos hospitais no sistema de saúde. Aliás, segundo a FNAM, nas ULS existentes verificou-se um aumento da recorrência ao serviço de urgência.

Estudo da Entidade Reguladora da Saúde ‘arrasou’ o modelo de ULS. Porquê?

Em 2015, a ERS (Entidade Reguladora da Saúde) realizou um estudo sobre o desempenho das ULS, entre 2011 e 2013, e as conclusões não favorecem estas unidades. Segundo a ERS, o tempo médio de internamento até à alta, nos utentes das ULS, foi superior ao dos hospitais não integrados em ULS; o número de cirurgias em ambulatório, em percentagem do total de cirurgias, foi mais baixo nos hospitais pertencentes às ULS; em quase todos os hospitais das ULS não existiram ganhos ao nível da coordenação entre Cuidados de Saúde Primários e Hospital, nomeadamente com redução de hospitalizações desnecessárias; os tempos máximos de resposta garantida não foi cumpridos nas ULS; os hospitais das ULS têm menos recursos do que os hospitais não integrados; e os atrasos para atendimentos agendados são maiores nas ULS.”

Confrontada pelo Observador, a Direção Executiva desvaloriza o estudo do regulador da saúde, que, diz, “tem falhas técnicas”. Em vez disso, prefere basear-se numa dissertação de mestrado, feita pelo investigador da área da Saúde Pública Ricardo Alves, que garante ter encontrado “ganhos de perceção de integração de cuidados por parte dos colaboradores nas ULS”.