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O ministro das Finanças, Fernando Medina, fala perante a Comissão de Orçamento e Finanças, na Assembleia da República em Lisboa, 28 de junho de 2023. TIAGO PETINGA/LUSA
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As infrações que levaram a Comissão Nacional de Proteção de Dados a condenar a Câmara de Lisboa verificaram-se durante o mandato de Fernando Medina

TIAGO PETINGA/LUSA

As infrações que levaram a Comissão Nacional de Proteção de Dados a condenar a Câmara de Lisboa verificaram-se durante o mandato de Fernando Medina

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Russiagate. Tribunais não se entendem sobre quem deve julgar a multa de 1,2 milhões aplicada à Câmara de Lisboa (em risco de prescrever)

Conflito de competências entre tribunais dura há quase um ano e não tem fim à vista. Se tribunal decidir que não há prática continuada, as violações mais antigas poderão estar em risco de prescrição.

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Os autos do chamado caso Russiagate estão a arrastar-se nos tribunais. Mais de um ano e seis meses após a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) ter decidido aplicar uma multa de 1,2 milhões de euros à Câmara Municipal de Lisboa por 225 infrações do Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD), nem sequer se sabe qual é o tribunal competente para julgar o recurso da autarquia — será o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa ou o Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa?

O Juízo Local Criminal de Lisboa, que já deveria ter julgado o recurso em 2022, declarou-se incompetente. Depois disso, só em maio deste ano é que o Tribunal da Relação de Lisboa foi chamado a pronunciar-se sobre a matéria.

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O caso está longe de ser claro, visto que o Tribunal de Conflitos (órgão jurisdicional que funciona junto do Supremo Tribunal de Justiça) também tem decisões contraditórias sobre o tribunal competente para julgar recursos sobre decisões da CNPD. Sendo que dois desses acórdãos contraditórios são assinados pela mesma juíza conselheira adjunta: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (vice-presidente do STJ).

Pelo meio, os autos já estão em risco de prescrição, visto que o tribunal que vier a ser considerado competente pode entender que os alegados ilícitos praticados pela Câmara de Lisboa entre 2018 e 2021 podem não corresponder a uma prática continuada — o que fará com que as ilegalidades mais antigas, de 2018, já tenham prescrito, e que as de 2019 estejam sob forte risco de acontecer o mesmo.

A origem do problema

Tudo começou em junho de 2021 quando o Observador e o Expresso noticiaram que a autarquia liderada por Fernando Medina tinha feito chegar por email à Embaixada da Federação Russa em Lisboa e ao Ministério dos Negócios Estrangeiros daquele país os dados pessoais (nomes, moradas e números de telefone) de três cidadãos russos que queriam organizar uma manifestação contra Vladimir Putin.

A partir da polémica gerada pela notícia, Fernando Medina ordenou uma auditoria que detetou um total de pelo menos 52 situações semelhantes em relação à embaixada russa e a outras representações diplomáticas às quais a Câmara de Lisboa teria cedido os dados pessoais dos respetivos opositores que organizaram tais manifestações. Estávamos perante uma prática corrente.

A partir da polémica gerada pela notícia, Fernando Medina ordenou uma auditoria que detetou um total de pelo menos 52 situações semelhantes em relação à embaixada russa e a outras representações diplomáticas de países a quem a Câmara de Lisboa teria cedido os dados pessoais dos respetivos opositores que organizaram tais manifestações. Estávamos perante uma prática corrente.

A investigação da CNPD confirmou isso mesmo, mas acabou por detetar muitos mais casos de violação do Regime Geral de Proteção de Dados (RGPD): 255 violações da lei, para ser mais preciso, em comunicações feitas pelo município no âmbito de manifestações, comícios ou até mesmo desfiles.

A acusação é de julho de 2021 e em janeiro de 2022, após o exercício do contraditório, a autarquia foi condenada pela autoridade administrativa ao pagamento de uma multa global de 1,2 milhões de euros.

A CNPD imputa à autarquia a violação de cinco princípios estruturantes do RGPD: princípio da licitude, lealdade e transparência, da violação do princípio da minimização dos dados e do princípio da limitação e da conservação e o incumprimento das obrigações de transparência, entre outros.

Tribunal julga-se incompetente três dias antes do início do julgamento

A Câmara Municipal de Lisboa recorreu judicialmente da condenação proferida pela CNPD no âmbito do processo de contraordenação e os autos foram distribuídos ao Juiz 9 do Juízo Local Criminal de Lisboa do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa.

O juiz titular dos autos chegou mesmo a marcar o julgamento do recurso para o dia 12 de setembro de 2022. Contudo, o mesmo magistrado titular do Juiz 9 do Juízo Local Criminal de Lisboa decidiu declarar-se incompetente de modo próprio no dia 9 de setembro — três dias antes de o julgamento se iniciar.

Russiagate: Proteção de Dados multa Câmara de Lisboa em 1,2 milhões. Autarquia aponta o dedo à “herança pesada” de Medina

O magistrado judicial invocou o próprio RGPD para argumentar que nos “processos de contraordenação por violação das normas do RGPD” cabem “recurso para os tribunais administrativos”. Daí que se declare “este tribunal [Juízo Local Criminal de Lisboa] incompetente em razão da matéria para a tramitação do presente recurso de contraordenação e competente para este efeito o Tribunal Administrativo do Circulo de Lisboa”, lê-se na decisão a que o Observador teve acesso.

A CNPD, representada pelo advogado Tiago Cabanas Alves, não se conformou com esta decisão. Após uma primeira rejeição em primeira instância e consequente reclamação bem sucedida no Tribunal da Relação de Lisboa para que o seu recurso fosse aceite pelo Juízo Local Criminal de Lisboa, a CNPD interpôs um recurso da declaração de incompetência do Juiz 9 para o Tribunal da Relação de Lisboa.

Isto é, a CNPD pretende que a Relação de Lisboa declare o Juízo Local Criminal de Lisboa como a instância judicial competente para julgar o recurso da Câmara de Lisboa.

Questionado pelo Observador, Tiago Cabanas Alves invocou o “dever estatutário” dos advogados para “não comentar processos judiciais em curso.”

Ministério Público ficou em silêncio mas falou no âmbito da apreciação da Relação

A CNPD tem um trunfo importante no recurso que está a ser apreciado pela Relação de Lisboa. A magistrada do Ministério Público (MP) titular dos autos na primeira instância emitiu uma posição a junho de 2023 favorável à Comissão.

Isto é, o parecer do MP defende que a “competência para decidir sobre a presente impugnação da decisão da entidade administrativa será efetivamente deste Juízo Local Criminal de Lisboa”, lê-se no documento a que o Observador teve acesso.

O parecer do MP defende que a "competência para decidir sobre a presente impugnação da decisão da entidade administrativa será efetivamente deste Juízo Local Criminal de Lisboa", lê-se no documento a que o Observador teve acesso. 

A procuradora do MP autora do parecer cita mesmo a posição do Tribunal dos Conflitos sobre matérias semelhantes referentes aos processos de contraordenação da CNPD.

Contudo, e aquando da declaração de incompetência do titular do Juiz 9 do Juízo Local Criminal de Lisboa, o MP ficou em silêncio.

Tribunal dos Conflitos com posições opostas — e uma magistrada em comum

Certo é que o Tribunal dos Conflitos tem posições opostas, sendo que uma delas é precisamente o Acórdão n.º 39/2021 de 23 de março de 2021 que é citado pelo MP no seu parecer.

Trata-se de um acórdão relacionado com uma empresa proprietária de um restaurante que não respeitou  a Lei da Proteção de Dados Pessoais por ter um “sistema de videovigilância que permitia a visualização em tempo real da cozinha na sua plenitude, viabilizando a identificação de pessoas e bens” num espaço que era apenas utilizado pelos trabalhadores.

O que é o Tribunal dos Conflitos?

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Trata-se de um tribunal superior que funciona na órbita do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Administrativo (STA). Em termos práticos, o Tribunal dos Conflitos aprecia e decide sobre conflitos de jurisdição entre os tribunais judiciais e os tribunais administrativos e fiscais com o mesmo grau hierárquico.

O Tribunal dos Conflitos é chamado a intervir quando dois tribunais de jurisdições diferentes se declaram incompetentes.

O tribunal existe desde 1933 mas sofreu uma reforma profunda em 2019. Desde esta altura que é apenas composto por dois juízes conselheiros, sendo que a presidência do tribunal é assegurada de forma alternada pelo presidente do STJ e do STA. Isto é, quando a última jurisdição que deu origem ao conflito pertencer à jurisdição administrativo-fiscal, o líder do tribunal é o presidente do STA. Se for a jurisdição comum, a liderança é assegurada pelo presidente do STJ.

Em caso de empate, o presidente do tribunal pode votar para decidir o sentido do respetivo acórdão.

A multa aplicada pela CNPD foi de 500 euros, tendo a mesma sido impugnada no Juízo Local Criminal de Guimarães. Este tribunal declarou-se incompetente, como aconteceu no caso do Russiagate com o Juízo Local Criminal de Lisboa, e ordenou a remessa dos autos para o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga. Contudo, este tribunal também se declarou incompetente. O que levou à entrada em cena do Tribunal dos Conflitos.

Num acórdão que teve as conselheiras Isabel Marques Silva como relatora e Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (vice-presidente do STJ mais antiga) como adjunta, o Tribunal dos Conflitos declarou o Juízo Local Criminal de Guimarães como competente por entender que estava em causa “matéria de ilícito de mera ordenação social.”

Contudo, o Acórdão 013/22 de 14 de julho de 2022, que tem como relatora a conselheira Teresa de Sousa e a conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza como adjunta, defende uma uma posição diversa. O Centro Hospitalar Barreiro Montijo tentou impugnar uma coima única de 380 mil euros por violação de duas normas do RGPD, tendo os autos sido distribuídos ao Juízo Local Criminal do Barreiro. E desta vez, as posições inverteram-se.

O Centro Hospitalar Barreiro Montijo tentou impugnar uma coima única de 380 mil euros por violação de duas normas do RGPD, tendo os autos sido distribuídos ao Juízo Local Criminal do Barreiro. E desta vez, as posições inverteram-se: o Tribunal de Conflitos decidiu que o tribunal competente era o tribunal administrativo.

O magistrado titular dos autos na justiça comum declarou-se incompetente e enviou os autos para o Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada — que, por sua vez, também garantiu que não tinha competência para decidir o caso.

Chamado a dirimir o conflito de competências negativo, o Tribunal dos Conflitos decidiu que a “competência material” pertencia ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, porque é a jurisdição administrativa que tem a competência material decidir a “impugnação de todas as decisões da CNPD”. A relatora Teresa de Sousa diz que é assim, mesmo admitindo tal competência “não ter sido contemplada” de forma explícita no Estatuto dos Tribunais Administrativo e Fiscais (ETAF) — e é este precisamente o busílis da questão.

Isto porque o ETAF define que os tribunais administrativos apenas têm competência para “impugnações judiciais de decisões da administração pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normais de direito administrativo em matéria de urbanismo” e por “violação de normais tributárias“.

Isto é, o ETAF é omisso em relação às contra-ordenações derivadas de violações da proteção de dados. É é precisamente este o ponto essencial da CNPD e do próprio MP, que acompanhou a posição da autoridade administrativa da proteção de dados.

Apesar de não se pronunciar sobre o caso concreto, o advogado Tiago Cabanas Alves (que defende a CNPD nos autos) lamenta que “o nosso quadro legal tenha, em matéria de comportamentos que violem as normas de proteção dados, criado uma enorme margem de dúvida quanto à jurisdição competente para realizar o julgamento. De tal modo, que o próprio tribunal de conflitos já decidiu o mesmo e o seu contrário.”.

Prescrição do caso depende de o tribunal aceitar a prática continuada

Certo é que os autos do processo Russiagate já têm um risco de prescrição. Em primeiro lugar, porque o caso está a arrastar-se nos tribunais e ainda faltam várias instâncias de recurso à Câmara Municipal de Lisboa para contestar o pagamento da multa global de 1,2 milhões de euros determinada pela CNPD para as 225 infrações do RGPD entre 2018 e 2021.

Em termos de prazo máximo de prescrição, esta coima tem um prazo de cinco anos e seis meses. Ou seja, os três anos de prazo de prescrição para multas acima dos 100 mil euros, prazo ao qual se acrescenta os cerca de 6 meses de suspensão devido à pandemia da Covid-19 e mais dois anos (que correspondem a metade do prazo de prescrição mais os 6 meses de suspensão máxima dos autos admitida pela lei).

Se a prática continuada não for dada como provada, então a contagem do prazo de prescrição inicia-se a partir da data de cada infração. O que faria com que, à data de hoje, as violações datadas de 2018 já estivessem em grande risco de prescreverem e as de 2019 ficassem sob esse risco. 

Se o tribunal competente para julgar o recurso entender que estamos perante uma prática continuada da Câmara Municipal de Lisboa, como defende a CNPD, então o prazo de prescrição só deverá ser atingido em meados de 2026. Isto porque o prazo de prescrição só começa contar a partir da data da última violação (que terá ocorrido em 2021).

Contudo, se a prática continuada não for dada como provada, então a contagem do prazo de prescrição inicia-se a partir da data de cada infração. O que faria com que, à data de hoje, as violações datadas de 2018 já estivessem em grande risco de prescreverem e as de 2019 ficassem sob esse risco.

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