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O Kremlin não assume estar em incumprimento

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O Kremlin não assume estar em incumprimento

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Rússia não paga a dívida porque não pode ou porque não a deixam? E o que se segue ao primeiro "default" em 100 anos?

Pela primeira vez em mais de 100 anos, a Rússia falhou pagamento de dívida. Segue-se a "disputa jurídica mais caótica de que há memória" mas o Kremlin avisa que pode levar a uma escalada do conflito.

Este 27 de junho de 2022 ficará na História como o dia em que a Federação Russa entrou, formalmente, em incumprimento na sua dívida pública – o que acontece pela primeira vez desde 1918, após a Revolução Bolchevique. Ao contrário do que é habitual nestes casos, porém, o Estado em causa não falha por falta de dinheiro mas, sim, porque as sanções impostas pelo Ocidente parecem ter encravado o pagamento. Segue-se “a disputa jurídica mais caótica de que há memória, com desfecho incerto” – mas a Rússia avisa que a consequência pode ser a escalada do conflito.

Investidores internacionais que são detentores dos títulos em causa confirmaram, ao final da noite de domingo, que a Rússia não tinha saldado o pagamento de 100 milhões de dólares (equivalente a 95 milhões de euros) que lhe eram devidos por conta de juros anuais associados a um par de lotes de dívida. Em rigor, a falha de pagamento já tinha ocorrido a 27 de maio mas este tipo de responsabilidades incluem normalmente um “período de carência” de 30 dias – que agora se esgotou.

Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre o incumprimento da Rússia, com Edgar Caetano.

Putin não paga as dívidas ou não o deixam pagar?

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Mas como é que só quatro meses após a invasão e as primeiras sanções é que a Rússia falhou o pagamento da dívida? Porque até recentemente as sanções impostas pelos EUA continham uma alínea que criava um regime de exceção que permitia aos investidores receberem dinheiro da Rússia quando estava em causa pagamentos de dívida. Porém, com o apertar do garrote das sanções, os EUA deixaram expirar essa alínea no final de maio.

Poucos dias depois, no início de junho, a União Europeia também passou a incluir na lista de entidades sancionadas o NSD, que é um agente pagador oficial de dívida pública da Rússia. Essa é a entidade que o Kremlin tinha encarregado de fazer os pagamentos de dívida pública russa a investidores internacionais – substituindo os serviços de intermediário que até essa altura eram desempenhados pelo (norte-americano) Citibank.

Treasury Secretary Janet Yellen Hosts IMF-World Bank Spring Meetings News Conference

Departamento do Tesouro, liderado por Janet Yellen, deixou expirar o regime de exceção que permitia pagamentos de dívida.

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A jogada seguinte de Putin, neste tabuleiro de xadrez económico e financeiro, foi aprovar nova legislação que, invocando” razões de força maior”, passou a considerar que estavam cumpridas as obrigações quando era transferido para o NSD o montante devidomas em rublos.

Ora, a generalidade dos títulos de dívida russa não prevê pagamento em outras divisas que não dólares ou euros, conforme a moeda em que os títulos foram emitidos, fazendo com que não seja claro até que ponto os investidores internacionais vão querer (ou poder) usar este expediente para tentar recuperar o seu dinheiro. Estima-se que a Rússia tenha o equivalente a 40 mil milhões de dólares em dívida detida por credores externos.

“Uma farsa”. Kremlin ameaça com escalada do conflito

Se as dúvidas em torno do NSD e dos pagamentos em rublos podem ter maior relevância nos próximos reembolsos de dívida, aqui a questão é mais simples: a Rússia garante ter feito o que lhe competia, no pagamento das responsabilidades, dentro do prazo, como vinha fazendo com os pagamentos das semanas e meses anteriores.

Neste caso em particular, dos juros com vencimento em maio, a Rússia garante ter enviado os fundos necessários para a Euroclear, uma câmara de compensação internacional, pouco tempo antes do expirar do regime de exceção que o Tesouro norte-americano deixou cair no final de maio. O que terá acontecido, de acordo com a melhor informação disponível, é que, uma vez expirada a exceção, os fundos foram congelados por causa das sanções e, assim, não seguiram para os destinatários.

O ministro das Finanças da Rússia, Anton Siluanov, considerou toda esta declaração de default uma farsa“, garantindo que tem meios à disposição para cumprir com os pagamentos e que a Rússia está a ser “empurrada” para esta situação. “Toda a gente é livre de declarar aquilo que muito bem entender – mas qualquer pessoa que compreenda aquilo que está a acontecer sabe perfeitamente que isto não é default algum”, atirou.

Isso não é problema nosso, que a Euroclear não esteja a finalizar a transação”, disse já esta segunda-feira o Kremlin. A Euroclear, uma empresa privada com sede em Bruxelas, não confirma nem ter recebido o dinheiro nem reconhece ter, de alguma forma, inviabilizado a transferência posterior para os destinatários – apenas garante ter cumprido, a todo o momento, as sanções em vigor.

Em circunstâncias normais, um caso como este rapidamente chegaria aos tribunais. Mas o ministro das Finanças russo já avisou que, “se chegarmos a uma situação em que bens diplomáticos são arrestados, então isso irá equivaler a um corte das relações diplomáticas e à entrada num conflito direto“, adiantou Siluanov, acrescentando que “isso colocar-nos-ia num mundo diferente com regras totalmente diferentes”.

Teríamos de reagir de forma diferente nesse caso – e não apenas através de mecanismos jurídico-legais“, ameaçou o ministro das Finanças da Rússia.

"Se chegarmos a uma situação em que bens diplomáticos são arrestados, então isso irá equivaler a um corte das relações diplomáticas e à entrada num conflito direto – isso colocar-nos-ia num mundo diferente, com regras totalmente diferentes. Teríamos de reagir de forma diferente nesse caso – e não apenas através de mecanismos jurídico-legais".
Anton Siluanov, ministro das Finanças da Rússia

Como o default poderia levar a uma escalada do conflito

O que é que podia levar a que houvesse o choque diplomático que está implícito na ameaça de Siluanov? O responsável sublinha que a Rússia não renunciou à imunidade soberana, o que significa que se está a alertar, desde já, que se algum credor for para tribunal internacional, a Rússia considera que “qualquer ação contra o Estado russo seria improcedente porque o Estado russo não é uma mera entidade comercial“, explica ao Observador Agostinho Pereira de Miranda, advogado ligado à Miranda & Associados (Miranda Alliance).

Na base desse conceito, explica o especialista, está a “ideia de que a propriedade e todos os ativos de um Estado não estão sujeitos à lei comercial dos outros Estados“, o que significa neste caso, não tendo a Rússia renunciado a essa imunidade, que se algum tribunal se pronunciar sobre o ato legislativo (a sanção) que justifica o bloqueio, isso será visto como uma afronta por Moscovo. “Se alguém apreender ou arrestar bens que são propriedade de um Estado – seja edifícios de embaixadas, carros, o que for – isso é visto como algo hostil, equivalente a um ato que é ilegal” que poderia fazer escalar o conflito, explica Agostinho Pereira de Miranda.

A Rússia estará, assim, a fazer uma ameaça velada de que, se houver uma decisão jurídica em que seja reconhecido a um qualquer credor internacional um direito sobre ativos ou propriedades russas, isso poderia ser suficiente para arrastar oficialmente os EUA e outros países do Ocidente para esta guerra – que Putin chama de “operação militar especial” na Ucrânia.

Chinese President Xi Jinping Visits Russia

Putin e Anton Siluanov, ministro das Finanças da Rússia.

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Para já, contudo, o próximo passo numa situação como esta seria reunir pelo menos 25% dos detentores de obrigações para se invocar a chamada “cláusula de aceleração” – o que equivale a usar a falha do pagamento do juro para desencadear o pedido de pagamento do valor total em dívida (o capital, além dos juros).

Normalmente, esse é o passo que leva a que uma falha de pagamento se transforme, na prática, numa declaração oficial de que um dado emitente soberano está na bancarrota – isto porque, em circunstâncias normais, se um devedor não tem recursos para pagar um valor relativo a juros muito menos terá capacidade para devolver aos credores a totalidade do dinheiro.

Mas a Rússia, que tem uma dívida externa relativamente pequena à luz do tamanho da economia (40 mil milhões de dólares), sublinha que tem recursos para pagar e tem disponibilidade para o fazer – o que irá tornar este processo “o caso de incumprimento soberano mais caótico e de desfecho mais incerto de que tenho memória“, afirmou ao The Wall Street Journal Mark Weidemaier, especialista em direito financeiro da University of North Carolina.

Amplamente sinalizado nas últimas semanas, incluindo pelas agências de rating, a notícia do default russo não teve qualquer impacto nos mercados financeiros na Europa, nem nas bolsas de ações nem mesmo na cotação do rublo, que continua em máximos de vários anos graças à intervenção das autoridades russas, que têm insuflado o valor do rublo com controlos de capitais e outras medidas.

O duro golpe que a invasão da Ucrânia está a causar na economia da Rússia (e como Putin tenta escondê-lo)

Quanto à Rússia, para já o impacto será sobretudo simbólico e mediático. Isto porque o acesso da Rússia aos mercados internacionais já estará severamente limitado e, por isso, pouco importará se as agências de rating vierem a declarar um incumprimento russo por causa desta falha. Normalmente, isso seria algo que dificultaria a emissão de nova dívida por parte desse emitente, mas neste caso é como chover no molhado.

O mais provável, tendo em conta a natureza sensível deste processo, é que os obrigacionistas assumam uma atitude de “esperar para ver” – até porque têm um prazo alargado, de três anos, para avançar para os tribunais. E nesse período longo pode fazer sentido esperar, até porque muita coisa pode mudar no que à guerra e às sanções diz respeito.

Mas caso os credores avancem, mesmo, para os tribunais, Agostinho Pereira de Miranda antecipa que a complexidade do processo “levará anos, senão mesmo décadas“, a que haja decisões – “basta ver quanto demorou a litigância com o default no pós-1917… muitos anos, alguns nunca foram resolvidos”.

Mais recentemente, a confiança que a Rússia tem em si própria, no que diz respeito à defesa jurídica no plano internacional, também tem recebido um impulso graças ao caso da Yukos. Essa era uma petrolífera privada, detida por um empresário desalinhado com Putin, Mikhail Khodorkovsky, que mostrou ter ambições políticas e acabou preso, num processo fiscal de contornos complexos (hoje está no exílio).

Como recorda Agostinho Pereira de Miranda, os ativos da Yukos foram integrados na pública Rosneft, o que acabaria por ser considerado ilegal pelo Tribunal Internacional de Haia, que condenou a Rússia ao pagamento de uma indemnização inédita de 51 mil milhões de dólares (aos acionistas da Yukos). Porém, “quase 10 anos depois, a defesa jurídica de Rússia tem tido sucesso no combate à decisão de Haia e, até ao momento, tem conseguido que nem um cêntimo tenha sido pago“.

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